Lacrimosa



Londres, século XIX. Um pequeno vilarejo convive com um medo constante de um livro; para ser mais exato: uma peça de teatro. O corpo estremece e os sentidos se perdem ao ouvirem o título da obra. "O Rei de Amarelo", história que não trata de uma majestade qualquer. Não. Não é a realeza pura e escolhida por Deus (se é que ela existe). Ele é o rei, um rei que lhe tirará a sensatez e, se preciso, a vida. 

lacrimosa: 1. Que causa choro; 2. Que chora muito; 3. Lastimoso. 
[inspirado na obra de Robert W. Chambers]. 
__________

A chaleira gritava em um ritmo infernal que mal o permitia terminar de ler o capítulo daquele livro. O incômodo causado pelo assovio lhe venceu e as duas pernas, que repousavam em uma cadeira velha, foram ao chão e impulsionaram Oscar a levantar. O rapaz saiu do aconchego reconfortante e seguiu em direção ao cômodo ao lado, a cozinha.
Algumas pedrarias encontravam o vidro de sua janela suja, denunciando quão forte estava o vento e quão feia seria a tempestade, mas mesmo assim, Oscar abriu a janela, para que o vendaval pudesse esfriar a chaleira de alumínio que parecia se contorcer após ser esquecida no fogo.
Lavou as mãos encardidas e limpou por debaixo da unha, onde pequenos fragmentos de poeira haviam se aglomerado. Olhou seu reflexo no espelho e encontrou seu rosto cansado e repleto de olheiras. A barba já tomava conta de sua face lisa e clara, e a sobrancelha, que mais parecia um tufo de pelos, esgueirava-se para cima. Juntou ambas as mãos e apertou as têmporas com quatro dedos, o stress era tamanho.
A ventania lhe trouxera diversas folhagens da amoreira em seu quintal. Quando enfim decidiu fechar a janela, encontrou a figura de Rose parada em frente ao seu portão de madeira. A moça usava uma enorme capa preta, que ia da cabeça aos pés, sendo que um capuz cobria-lhe a cabeça. A franja em sua testa esvoaçava com o vendaval e a cesta de palha em sua destra sacudia incansavelmente. Oscar abriu um sorriso ao ver a cena, que lhe trazia certa paz.
— Entre! – Gritou-lhe.
— Eu só vim trazer novos temperos e tabaco. – Disse timidamente.
— Venha cá, Rose. – A voz soara de forma ansiosa. — Faço questão.
Rose assentiu com a face e cruzou o portão quintal adentro. Oscar seguiu para a porta da frente e a destrancou. Abriu delicadamente, revelando o sorriso rasgado de Rose. Assim que adentrou a casa deixou a cesta cair sobre o assoalho, e os braços (agora livres) agarram as costas de Oscar em um abraço de saudade. O mais velho buscou desesperadamente pelos lábios rosados da jovem, que tinham um gosto cítrico.
— Sinto muito recepciona-la assim – Disse em um tom baixo enquanto se livrava do abraço. — Ainda nem me limpei.
— Eu é que devo me desculpar por aparecer aqui ‘sem mais nem menos’. – Recolheu a cesta do chão. — Mas eu precisava te ver.
— Seus pais sabem que estão aqui?
— Certamente não. – Ambos bufaram um sorriso. — Então você tem de ser rápido.
— Mas eu nem me lavei, e minha casa está uma completa bagunça, assim como meu cabelo, barba e sobrancelha...
E antes que Oscar pudesse dizer algo os lábios foram calados pelo clamor de Rose ao colar mais uma vez no amado com um beijo.
Todas as preocupações e medo caíam por terra quando entregavam ao sentimento do desejo. As peças de roupas eram tiradas uma a uma, fazendo soltar pequenos botões e laços que ornamentavam o leve vestido de Rose. Oscar tentava esconder os pequenos detalhes que tornavam seu corpo imundo devido à falta de banho, mas a amada parecia não se importar e revelava o “não-incômodo” com um beijo.
Oscar fedia a tinta, mas Rose gostava do cheiro forte. O odor do mais velho era na verdade um aroma confortante que refrescava suas narinas. Os dedos sujos de tinta e repleto de calos distribuíam carícias em um entrelaço apaixonado, e os fios de cabelo eram puxados com força enquanto cavalgava no colo do namorado.
Os gemidos de ambos competiam com o uivar do vento, que sacudia a amoreira lá fora e arrastava alguns objetos do jardim. O estralar da cama saudava dois corpos unidos pelo desejo e paixão. Rose gostava de fechar os olhos para sentir os lábios de seu amado percorrer seu corpo nu, e entregava-se de corpo e de alma para ser devorada, ela ansiava pelo contato. Oscar já havia se acostumado com os arranhões diversos em suas costas e os puxões de cabelo já nem lhe doíam mais como antes. Não havia dor, mas sim prazer.
O silêncio nunca pairava sobre a casa quando os dois estavam reunidos. Mesmo com fim do contato carnal, a respiração ofegante emanava uma perfeita sonata.
A chuva começara por fim cair. Oscar saiu às pressas da cama para fechar a janela. A chaleira havia esfriado mais do que necessário e ele a colocou de volta no fogão para esquentar a água de seu banho.
— Você não pode sair nessa chuva. – Ergueu o tom de voz enquanto retornava ao quarto. — O tempo está feio. Passe a noite aqui.
— O que direi aos meus pais? – Enrolou o corpo no lençol surrado da cama.
— Que você veio me trazer temperos, mas a natureza nos pegou de surpresa com uma tempestade.
— E acha que eles vão acreditar? – Abriu um sorriso de desdém. — Eles provavelmente sabem do que acontece nessa casa do – movimentou os dedos em sinal de aspas. — “pecado”.
— Já disse que por mim estaríamos casados, mas você é a filha mais nova e deve esperar sua irmã... ao menos adiantamos alguns passos.
Oscar juntou-se a cama novamente e deixou os lábios a mercê de Rose. Recebeu em troca diversas mordidas rigorosas que fizeram a boca sofrer, gemeu em protesto e ganhou um beijo. Usou a destra para desembaraçar os longos fios negros da amada e beijou-lhe a testa.
— Você é preciosa demais para mim. – Confessou em baixo tom. — Nunca deixarei que te façam mal.
— Por que diz isso? – Os olhos castanhos brilharam e um sorriso sincero pairou sobre os lábios alegres.
— Preciso de motivo para confessar meu amor para você?
Rose soprou-lhe um sorriso tímido próximo à face suada e beijou a ponta do nariz do amado. Encarou-o por míseros segundos antes de fechar novamente os olhos e esperar por um beijo. Beijo que não foi lhe dado, pois a chaleira gritou anunciando que a água já havia fervido.
— Droga de chaleira.
O coração quase lhe saiu da garganta, o grito havia lhe interrompido o momento de calmaria e Oscar sentiu o corpo pesado de novo. Tirou o objeto do fogo e o levou consigo, segurando o cabo de madeira com cuidado para não se queimar.
— Rose – gritou pelo amado. — Vou me lavar. Não vá embora.
— Tudo bem, Oscar. Eu o aguardo.

*

Oscar saiu do banho enxugando os fios castanhos com uma pequena toalha velha. Deixou a chaleira em um canto qualquer da cozinha e seguiu para o encontro de Rose. A mais nova não estava no quarto, mas sim na sala. Os dedos delicados deslizavam pela prateleira de livros e ela observava os títulos desconhecidos que repousavam sobre a poeira. Ela vasculhava a sala, sem saber que era observada, e se sentia à vontade para sussurrar cantigas que eram quase inaudíveis.

“Baa, baa, ovelha negra,
Você tem alguma lã?
Sim, senhor, Sim, senhor,
Três sacolas cheias;
Uma para o mestre,
Uma para a dama,
E uma para o garotinho,
Que vive no meio do caminho.”

Oscar teve uma estranha sensação. Fechou os olhos e apoiou-se sobre a parede corredor. A respiração estava falha e sentiu a cabeça pesar. Os últimos versos da cantiga repetiam em sua cabeça como mais intensidade, em tom grave e voz grossa “e uma para o garotinho que vive no meio do caminho”.
Garotinho.
Sacudiu a cabeça espalhando os pensamentos contra a brisa que cortava o corredor e voltou à atenção para Rose. A jovem observava o livro sobre a mesa próximo a poltrona velha. Curiosa, o trouxe para perto e leu o título em voz alta.
— O Rei de Amarelo.
Oscar arregalou os olhos. O que aquele livro estava fazendo ali? Gritou e correu em direção a Rose, censurando aquele movimento. Roubou-lhe o livro das mãos delicadas e o trouxe para seu peitoral.
— Não leia esse livro! – Disse firme. — Por tudo que é mais sagrado. Não leia.
A moça o observava com olhos arregalados. As sobrancelhas arqueadas e os lábios entre abertos denunciavam a face preocupada.
— Osc-... Oscar. – Disse com medo. — O que... O que eu fiz de errado?
— Você não fez nada de errado. – Jogou o livro para longe de ambos. — Perdoa-me. Vem aqui. – Puxou-a para um abraço embalado. — Aquele livro é... Amaldiçoado.
— Por que estava lendo então?
— Eu não estava lendo. Eu não faço a mínima ideia de como chegou até minha mesa. Ele estava guardado na caixa de pertences de Thomas.
Rose soltou-se do abraço rapidamente e afastou-se de Oscar.
— Por que guardas pertences de mortos em tua casa? Não sabe que isso torna tua casa um ponto de encontro para espíritos?
— Que bobagem, Rose. – Tentou puxar a mais nova de volta para o abraço. — O quê? Estás com medo de mim agora? Tu conheces bem meu serviço, sabe com quem lido. Não deverias ter medo agora.
— Conheço teu serviço e respeito tua profissão. – Disse tentando controlar a respiração. — Mas isso não explica o porquê de ter um livro de Thomas em sua casa, e ainda uma caixa com outros pertences.
— Como poderia me desfazer de objetos tão preciosos? Como posso desfazer de meu próprio irmão? – Fungou. A lembrança da morte ainda estava fresca em sua memória. — Eu lido com a morte todos os dias, você sabe que eu gostaria de pintar outras coisas, mas não posso. Acha que tenho coragem de ir trabalhar todos os dias?
— Oscar... Por favor! Não chore...
— Então prometa para mim que jamais voltará a tocar naquele livro.
— Eu... eu prometo...
— Não posso perder você. Não como perdi Thomas.
— E por que não se livra dele? – Rose aproximou sorrateiramente do amado. — Vamos queimá-lo.
— Porque eu não consigo me livrar dele. Não até que eu o leia. – Oscar a puxou novamente para acalentá-la.
— E o que acontece se você ler?
— Eu não sei. Mas dizem que coisas horríveis acontecem com quem lê aquela peça. – Suspirou. — Mas eu vou escondê-lo.
— Nada vai acontecer com você – Apertou-se ainda mais no abraço. — Nem comigo. Eu estou aqui, não vou a lugar nenhum.
Ficaram abraçados em silêncio, apenas deixando as respirações misturarem-se com o barulho do vento.
— Aliás, sua voz é linda. Até mesmo cantarolando uma cantiga infantil.
— Cantarolando? Eu não estava cantarolando cantiga alguma. – Disse surpresa. — Quando ouviu?
— Quando eu estava no banho. – Mentiu. — Deve ter sido a vizinha. – Mentiu mais uma vez.
— Você nunca ouviu minha voz, será que devo lhe dar a honra? – Brincou.
— Sou digno de ouvir tua preciosa voz, Milady?
Rose soltou-se do abraço e encarou a face do namorando, pedindo gentilmente que sentasse na poltrona. Assim que Oscar o fez, a jovem soltou o cabelo preso em um coque mal feito e deslizou as mãos pelo vestido em uma tentativa de desamassar.
Oscar observava a cena com um sorriso. Admirava e amava cada detalhe de Rose, e, se fosse possível, apaixonou-se novamente pela mulher.
Os lábios de Rose abriram e o tom agudo de sua voz percorreu a pequena sala. Era uma voz limpa, sem imperfeições, cujo vibrato arrepiava cada parte do ser. Um canto que facilmente atingiu o lírico e acalmou o peito pesado do mais velho, que quase devorava Rose com os olhos.
Nem mesmo o uivar do vento era capaz de atrapalhar a cantoria. Era uma mágica. Como se Rose tivesse feito um pacto com algo para ter uma voz tão boa, pois ter precioso timbre era quase impossível.

*

Oscar abriu os olhos e encontrou diversos fios negros de Rose espalhado por sua face. Moveu-os com a destra e sentou-se na cama. A namorada dormia tranquilamente. O cobertor havia descido até a cintura e revelava pequeninos seios rígidos por conta do frio. Da boca entreaberta escorria um leve fio de saliva e a franja em sua testa estava toda bagunçada e enrolada, pois havia suado após entrelaçar e ondular seu corpo ao de Oscar.
O mais velho a cobriu devidamente com o cobertor e levantou da cama, seguindo para o banheiro a fim de fazer sua higiene matinal. Assim que adentrou no cômodo encontrou o pequeno espelho de parede partido em diversos pedaços, e só percebera isso quando um caco afundou em um dos dedos de seu pé descalço.
— Ai! - Deu um grito de espasmo. — Droga de temporal.
Oscar havia acreditara que o forte vento derrubara o espelho, mas ele sabia que não era possível o vendaval invadir um cômodo tão fechado como o banheiro. Recolheu os cacos um a um, se policiando para não cortar novamente o pé. Juntou os cacos em um canto e quando se levantou para buscar um jornal velho (para enrolar os vidros) deu de cara com Rose. Ela estava nua, como se não se importasse com a gélida brisa que dominava o ambiente doméstico.
— Rose? - Perguntou confuso, pois a namorada olhava fixamente para os cacos no chão. — Está tudo bem? O que foi?
A mais nova balbuciou meia dúzia de palavras que Oscar não entendia. Rose esticou o braço esquerdo, revelando um pulso repleto de sangue.
— Rose? Quem fez isso com você? Responda-me!
O pequenino corpo de Rose tremia com as sacudidas que Oscar lhe dava. Ela estava tão confusa quanto o namorado, e a frase que pronunciara em seguida parecera loucura:
— Thomas. - Murmurou. — Ele me atacou.
— Rose, o que você está falando? - Oscar a puxou para a cozinha. — Thomas te atacou? Mas ele está…
— Morto… eu sei… - Ela deixou ser guiada pelo namorado até a pia da cozinha, onde deixou a água corrente percorrer o ferimento. — Mas ele estava no seu quarto e… sumiu…
— Rose, você tem noção do que está dizendo?
Ela sacudiu a face em negação e trouxe o pulso para perto de si.
— Eu sabia que você não acreditaria em mim. - Murmurou. — Então eu preciso dizer algo que talvez você não acredite. - Oscar aguardava. — O livro… aquele livro que você jogou ontem no canto da sala, ele… estava em cima de você essa madrugada. Ele estava pousado em seu peito, aberto e…
— Você não leu, leu? - Oscar agarrou as bochechas de Rose. — Jura para mim, jura por Deus que não leu!!!
— Acalme-se. - Agarrou as mãos frias do namorado e trouxe-as para próximas dos lábios, deixando um breve selar em ambas. — Eu o joguei para longe, como você fez. Eu não li nada.
— Nunca leia aquele livro, nem mesmo que ele te chame. - Implorou.
— Oscar… Thomas leu o livro? Por isso ele está…
— Sim. Ele enlouqueceu. E morreu com o livro em cima de seu peito.
— Por que o livro ainda está aqui?
— Já lhe disse, eu não consigo me livrar dele… Ele sempre aparece de volta…
A essa altura o namorado puxava os próprios cabelos e a respiração ofegante trazia o início de um ataque de pânico.
— Shh… - Rose envolveu o corpo nu em Oscar. — Precisamos fugir dessa cidade. De tudo isso. Você está delirando e eu estou delirando com você.
— Ou estamos presos na maldição do Rei de Amarelo. - Murmurou contra o abraço.
— É só não ler o livro, não é mesmo? Então nada vai acontecer.
— Mas você está com o pulso cortado, disse que Thomas te atacou…
— O que está dizendo? - Rose afastou do abraço. — Thomas?
Oscar estava enlouquecendo ou aquilo era um tremendo pesadelo. Rose estava a sua frente, usando o vestido surrado da noite anterior, cabelos presos e sem nenhum arranhão no pulso.
— De quem é esse sangue então? - Olhou os respingos na pia.
— Seu nariz amanheceu sangrando, você foi correndo desesperado até o banheiro e derrubou o espelho, quando resolveu sair do banheiro acabou pisando em alguns cacos. - Ela explicava calmamente. — Eu ouvi seu pranto de dor e vim te ajudar.
— Rose… O que está acontecendo?
— Rose?
A visão turva de Oscar o levou a fechar os olhos com força e quando os abriu encontrou a figura de seu falecido irmão a sua frente.
— Você deveria ter me impedido.
Oscar esticou os braços para tocar em seu irmão, mas o corpo de Thomas dissolveu-se em pedacinhos, tornando em seguida cinzas que se espalhavam pelo chão da cozinha. Um grito semelhante ao barulho da chaleira ecoou pela cozinha, rasgando os tímpanos de Oscar.





E ele tinha razão.


Tudo não passara de um terrível pesadelo.


Acordou em um pulo. O nariz não sangrava, mas a cabeça doía como se tivesse recebido uma pancada na cabeça. Rose dormia ao seu lado, nua, com os pequenos seios revelados e o cobertor na altura da cintura.
Acariciou a face da tranquila da namorada e agradeceu mentalmente por ter sido apenas um terrível pesadelo.
Ou quase isso.
Olhou na beirada da cama e o tenebroso livro pairava como se estivesse à espera de olhares curiosos e desprevenidos. Oscar chutou o objeto para fora da cama e bufou.
— Maldito seja o Rei de Amarelo.

*

Os dias passaram lentos e cinzas. Vez ou outra o céu presenteava a cidade com um tímido arco íris no final da tarde, porém a maioria dos dias eram chuvosos, frios e repletos de lodo.
A chuva forte provocara uma infiltração na casa de Oscar, e o cheiro forte de mofo o havia deixado adoecido, não permitindo que ele fosse trabalhar durante duas semanas. Os dedos do rapaz ansiavam por seus pincéis e tintas, apesar de não ser um trabalho comum, era a sua distração e o que o afastava de sua casa e do livro.
Oscar pintava. Era um artista bem conhecido na cidade. Ele gostava de pintar paisagens, mas sua carreira alavancou quando aceitou o convite de pintar uma pessoa morta. Uma criança de cinco anos, vítima de pneumonia, deixou os pais profundamente abalados. A ideia de pintar a criança morta viera de uma tia e os pais apoiaram. Oscar achou estranho de início e completamente perturbador, mas enquanto dava leves pinceladas tentava se convencer de que a menina apenas dormia.
A pintura atraiu a atenção dos moradores, e Oscar era sempre chamado para pintar os mortos, que para ele não haviam partido, de fato, apenas estavam dormindo em um sono profundo.
O trabalho era considerado “macabro” por alguns, até mesmo por Oscar, mas ficar sozinho em casa era mais macabro ainda. Ele tentava ignorar as sombras que corriam pelas paredes e os sussurros que ouvia ao pé do ouvido, mas às vezes enlouquecia de tanto fingir. O tempo cinza só piorava sua paranoia e ele ficava o dia todo escondido embaixo das cobertas, apenas saindo de sua cama para ir ao banheiro.
O médico o visitou no início de sua tosse e concluiu que Oscar tinha alergia ao mofo. Mas para onde o rapaz iria? Sua família estava toda em Paris, e a única pessoa que tinha em Londres era Thomas. Exatamente. Tinha. Sem saber para onde ir, Oscar isolou-se em sua casa mofada, que ficava com as janelas abertas mesmo nos dias mais frios.
Duas semanas depois, quando já estava um pouco melhor, o Doutor afirmou ter sido um milagre Oscar não ter pegado uma pneumonia devido à baixa temperatura.
Rose foi visitar Oscar após as duas semanas de repouso. Levou consigo a velha cesta de palha, mas dessa vez com sopas e algumas folhas e ervas para fazer chás. Também trouxe consigo um cachecol que ela mesma havia tricotado. Era branco e macio, havia feito com muito carinho.
— Eu queria ter vindo antes, mas meu pai não deixou. – Disse entrando na casa sem fazer cerimônia. — O médico nos avisou que estava melhor, então vim correndo.
— Fico feliz que esteja aqui. – Puxou a mão da mais nova para um entrelaço. — Eu não me perdoaria se viesse antes e fosse atingida por minha doença.
Oscar ajeitou-se na velha poltrona e Rose sentou-se no braço da mesma, em seguida sentiu o corpo ser entrelaçado por seu namorado. O mais velho ainda respirava com certa dificuldade, mas o rosto estava ganhando cor. Era como se estivesse vivo novamente.
— Deixe-me preparar uma sopa para ti.
— Espere mais um pouco. – Apertou-a mais forte no abraço. — Agora que minhas narinas estão boas eu posso sentir teu cheiro, eu quase me esqueci dele.
A mais nova sacudiu a cabeça e murmurou palavras que Oscar não fora capaz de entender. Ela deixou ser abraçada com força e fechou os olhos para se familiarizar com o momento, pois também sentiu falta de Oscar.
O barulho de no chão da sala denunciava que a chuva havia chegado. Rose saltou da cadeira e correu para os cômodos, procurando por um balde para que o carpete não se ensopasse.
— Que vergonha. Minha casa está caindo aos pedaços. – Balbuciou enquanto levantava para mexer na cesta de Rose.
A mais nova correu até o local da goteira e deixou o balde em cima do carpete. Observou as gotas que caíam dentro do balde e notou algo estranho. Esticou os dedos para verificar o líquido e se deu conta que não era água, mas um líquido de coloração vermelha.
Virou o corpo para chamar Oscar e esbarrou-se nele, que também se aproximava da namorada. Ela esticou o dedo sujo e ele esticou o livro. O mesmo livro que os assombrava.
— O que é isso? – Fora uníssono.
Os olhos de Rose arregalaram tanto que lhe doeram as órbitas e as têmporas. Oscar voltou o rosto para cima e observou as gotas caírem. Esticou a destra, mesmo que hesitantemente, e sentiu o líquido vermelho em seus dedos. Levou-os até suas narinas e cheirou.
— Tem cheiro de... Sangue. – Disse para Rose que estava boquiaberta. — Espere aí...
— O quê? – Rose não tirava os olhos do livro.
— Não há como ter uma goteira nesse canto.
— Por quê? – Finalmente os olhares se encontraram. Oscar estava assustado, assim como Rose.
— Porque aqui em cima está o sótão.
Assim que Oscar pronunciou a palavra um estrondo ressoou por toda a casa. O barulho parecia vir do local citado. Rose agarrou-se ao namorado e fechou os olhos. Orou. Orou pela primeira vez para o Deus que desobedecia e pediu que tudo o que houvesse de ruim fosse dissipado.
— Eu preciso ver o que é. – O mais velho disse baixinho.
— Não... Só feche os olhos e espere esse susto passar. – Rose pressionava os olhos com força e seu corpo tremia.
— Rose... – A menor o olhou. — Onde você encontrou esse livro? Por que ele estava dentro de sua cesta?
— O quê? – Olhou-o incrédulo. — Eu não o trouxe para cá.
— Eu preciso ver o que é. – Disse com firmeza. — Rose, você precisa confiar em mim.
— Vai me deixar sozinha aqui? – Choramingou.
— Eu prometo que volto. – Limpou o sangue em sua blusa e tocou o queixo de Rose com a ponta “limpa”. — Você tem que jurar que se algo aparecer vai gritar o meu nome o mais alto que puder.
— Eu prometo. – Choramingou mais uma vez. — Mas não leve esse livro... Não... deixe-o aqui. Não vá com ele...
— Não posso deixá-lo contigo.
— E se o que estiver lá te fazer ler? E se... For ele? Deixe-o comigo. Eu vou... Vendar-me... isso... amarre minhas mãos.
— Rose... Isso é... Necessário? – Beijou as mãos frias da amada. — E se você precisar me gritar?
— Você está doente e também à mercê dos espíritos malignos. – Sussurrou. — Eu estou saudável, sã, eu vou cuidar desse livro para você.
— Promete para mim que não vai abrir?
— Eu prometo.
Oscar beijou a testa suada de Rose e fitou os olhos da amada por alguns segundos. Relutante, deixou a sala e também a amada. Foi até o canto da cozinha que dava acesso a escadaria para o sótão e observou a abertura.
Abriu rapidamente as gavetas da cozinha à procura de uma vela, e quando encontrou uma antiga, acendeu-a rapidamente, se dirigindo em seguida para a escada de madeira.
Oscar não queria abrir os olhos quando estava com o tronco dentro do sótão, mas abriu. A vela iluminava pouco, mas foi o bastante para encontrar de onde o sangue estava vindo.
Era um cordeiro. Preto. Sujo. Fedorento. Morto.
Ele logo reconheceu de quem pertencia o animal, era do vizinho da frente, Nicholas, que possuíam uma propriedade grande o bastante e criava ovelhas. Black era o nome do borrego e ele costumava escapar pelas ruas de terras para correr atrás das crianças que brincavam pelo vilarejo.
Oscar puxou o animal pelas patas e o jogou no piso da cozinha. Deu mais uma olhada no sótão e não encontrou nada suspeito. Resolveu descer.
Desviou do animal morto em sua cozinha e jogou a vela na pia. Lavou as mãos com a água da torneira e bufou. Mas não havia tempo para descansar, pois Rose estava sozinha.
Correu – com cuidado – até a sala. Rose estava no canto do cômodo com o rosto virado para a parede.
— Rose?
A morena não virou o rosto.
— Rose?
Mais uma vez.
— Rose! – Disse com mais firmeza.
Resolveu caminhar, com medo, é claro. Tocou o ombro da amada e ela subitamente virou-se para Oscar. O rosto estava inchado de tanto chorar e as lágrimas caíam furiosamente pelo rosto pálido. A parede estava arranhada e havia lascas de madeiras entre as unhas de Rose, e os dedos sangravam.
— O que aconteceu? – Sacudiu-a pelos ombros. — Rose!
— Ele me chamou e eu li. Ele disse que devemos pagar por nossos pecados. Pelo seu pecado. – Disse sem pestanejar. — Foi horrível Oscar. Foi horrível... esse livro... Ele... Ele é a morte... Ele veio para confirmar que nossas carcaças fedorentas jamais poderão salvar nossos espíritos pecadores e inúteis.
— O que você está dizendo? – Oscar gritava.
— Perdoe-me, Oscar. – A mais nova caiu de joelhos em frente ao amado. — Eu jamais seria capaz de te salvar. Estamos condenados.

*

A chaleira irritante apitou por volta das três da manhã, juntamente com o relógio de corda que soara anunciando o horário. Oscar acordou em um pulo: quem estaria fazendo chá a esse horário? Olhou para a cama ao lado e não encontrou seu irmão. Preocupou-se e jogou as cobertas pesadas para longe, levantando-se da cama e seguindo para a porta de seu quarto.
O chão de madeira estava ensopado. Estranhou. Ouviu barulho vindo da cozinha e guiou-se até lá. Foi onde encontrou Thomas preparando chá. Ele estava nu e nem parecia se importar com o inverno rigoroso que 1898 trouxera.
“Thomas?” – Perguntou com medo e logo se arrependeu.
O irmão voltou o rosto para o mais velho e sorriu. Ou pelo menos Oscar identificara um sorriso.
“Tive que arrancar meus olhos para que Ele não me perturbasse mais. ” – O mais velho sentiu a urina escorrer pela calça do pijama. “Agora posso viver em paz”.
Thomas voltou a derramar a água quente na xícara, mas derrubara todo o líquido por sua mão e não parecia se importar. Assim que terminou voltou a olhar para o irmão e esticou a xícara, oferecendo gentilmente o chá.
“Thomas... O que...”.
“Todo pecado carnal será descontado na carne” – disse com convicção. “Meus olhos não eram puros e precisei pagar por isso. Assim como meu espírito não é puro. ”
“Eu não entendo. ”
O mais novo deixou a xícara cair no chão e cambaleou até os braços do irmão.
“Não abra aquele livro, nunca. Seja forte. Ele vem me buscar. ”
Oscar abriu os lábios para dizer algo, mas sentiu o corpo amolecer e não resistiu: desfaleceu.
Quando acordou não estava na cozinha, mas sim em sua cama confortável. Olhou para o lado e não encontrou Thomas, resolveu procura-lo para lhe contar sobre o pesadelo.
Mas não era um pesadelo.
Assim que abriu a porta encontrou o corpo de Thomas caído no chão. A velha tesoura enferrujada estava presa no polegar do mais novo e o faltava pele no pescoço. O sangue já nem estava fresco e não havia mais vida no corpo de Thomas.
Oscar correu para o corpo e percebeu a face sem olhos. Não havia sido um pesadelo afinal.
O pesadelo maior estava começando.
Ao lado do corpo de Thomas, um livro, intacto.
“O Rei de Amarelo” – leu o título baixinho.
Não teve coragem para abrir. Era esse então o livro.
O livro que destruíra a vida de quem Oscar amava.

*

Rose balançava na cadeira de madeira que estava posicionada na varanda da casa, enquanto seu amado, Oscar colhia as amoras na amoreira que estava carregada com as frutas.
O mais velho trouxe uma bacia com a fruta e deixou sobre as coxas de Rose. A mais nova apenas esboçou um sorriso e com as mãos trêmulas procurou por uma fruta, levando-a na boca logo em seguida.
— Estão doces.
— Sim. – Oscar sorriu. — Elas estão madurinhas.
— Queria poder ver as cores.
Rose tocou a venda com a mão livre e respirou fundo. Levou algumas amoras até a boca e mastigou fortemente.
— Pelo menos ainda tenho as sensações. – Murmurou.
— Thomas enlouqueceu. – Confessou tristemente.
— E acha que não estou? – Ergueu o tom de voz. — Ele fala comigo. Sussurra em meu ouvido. Ele toca em mim.
— Rose...
— Por que não me mata, Oscar? – Gritou. — Por que arrancar meus olhos se estou condenada a viver nesse inferno?
Oscar ajoelhou-se à frente de Rose e chorou. Ele sentia a garganta queimar em desespero, assim como as lágrimas que esquentavam seu rosto.
— E você acha que ele me deixaria tirar tua vida? – Respondeu no mesmo tom que Rose. — Esse é o meu castigo. O amor é o meu castigo. Ele sabe o quanto isso me machuca, por isso não deixa você ir. – Respirou fundo. — Ele só vai nos levar quando cansar de brincar com nossas almas pecadoras.
Rose buscou pela mão de Oscar e o entrelaço de mãos frias se fez em meio aos resquícios das amoras. A mais nova sentia vontade de chorar, mas como não era possível, apenas soluçava um choro preso em sua garganta. O amado a encarava e chorava por si, por ela e pela maldição.
Ao lado dos dois, mais precisamente na pequena mesa da varanda, o livro. Os raios solares iluminavam a capa velha e suja, mas isso não impedia que ele brilhasse.
Porque esse livro não é como outro qualquer. Ele te transforma. Amaldiçoa-te. Aprisiona-te em um cubículo tenebroso. Quanto mais você olha para si, mais você encontra o nada, o vazio. De que vale a pena continuar vivendo se tudo o que imagina existir, não é real?
Se teus olhos pousarem uma vez sobre uma linha qualquer de "O Rei de Amarelo" a condenação é imediata.
Mas todos nós estamos condenados. Porque ele está aqui, entre nós. Está ao seu lado. Está em você.
E não há para onde fugir.



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