Heloísa




Eu me lembro do seu último dia. Lembro da tua blusa preta, a que você mais gostava. Do batom vermelho gritante. Dos olhos cansados, mas maravilhados com o que via. Dos fios da tua peruca esvoaçando com o vento e bagunçando seu penteado. Do gosto doce da tua boca quando você me beijou desesperadamente na roda gigante. E do nosso último pôr do sol. Ainda tenho todas as fotos que Mônica tirou da gente. E, principalmente as fotos que ela tirou de você. Heloisa, como você estava linda. Naquele dia eu me apaixonei desesperadamente por ti. Mais uma vez.
Eu acho injusto essa merda de doença. Seus seios já haviam sido arrancados sem piedade e mesmo assim aquilo continuou a crescer dentro de ti. Ver você destruída e corroída pelo tumor fazia com que meus pés fraquejassem naquele hospital. Eu não aguentava mais Helô, eu só queria livrar você de tudo isso. Queria poder enfiar minhas mãos e retirar o tumor. Eu queria poder levar você para todos os lugares, queria livrar você de todo esse tratamento de merda que… me destruiu. Sim, ele me destruiu, mas você foi forte; magnífica. Mesmo com o corpo exausto você ficava horas a fio recebendo a medicação, e mesmo que seus olhos despejassem algumas lágrimas você não desistia. Você continuou.
Heloisa. Dói demais relembrar. Por isso eu prefiro falar do seu último dia.
Lembra das diversas cores no céu? Lembra que flagramos Yasmin e Mônica trocando beijos enquanto o sol se punha? Você mesmo disse que precisava de uma foto daquele momento e eu sugeri que invertesse o ângulo da câmera para gravar o nosso beijo. Estou assistindo ele agora… A tua voz estava mais rouca do que era, mas eu sinto que ela amacia meus tímpanos e me traz paz mesmo que por agora.
A foto da roda gigante ainda está em meu celular. Eu não me arrisco em colocá-la como papel de parede. Seria doloroso demais. Além disso, sua selfie ornamenta a tela do meu aparelho; não teria a audácia de tirá-la dali. Gosto de lembrar de quão linda era, e que toda essa beleza estava ao meu alcance.
Lembra da nossa lua de mel? Você dirigia tão rapidamente pela estrada que fazia meu coração pulsar em desespero e medo. E você pediu que eu levantasse os braços para sentir o vento encontrar minha pele. Era como se o vento levasse para longe o que eu não queria. Ele levou o medo. Pergunto-me se foi o mesmo vento que resolveu levar o que era de mais importante para mim, pois ele levou você. Você dissolveu em mil pedacinhos dentro de mim e a brisa da tristeza fez questão de espalhar você por cada parte de meu ser. Hoje é difícil até mesmo mover os dedos, pois as pontas de meus dedos deveriam estar fazendo cafuné em sua cabeça e não segurando essa caneta que escreve essa carta triste a ti.
Ter você ao meu lado era o que me impulsionava a seguir em frente. Essa correria corriqueira acaba tirando de nós a essência de sermos humanos, e você me fazia relembrar que ainda havia coisas boas no mundo, pois você era uma delas. Você era o meu tudo. Nem mesmo todos os fenômenos da natureza são capazes de superar toda a tua força, nem mesmo um furacão pode igualar a ti. Você era chuva, brisa, furacão, terremoto, as quatro estações… você era tudo e ao mesmo tempo não era nada. É estranho escrever que você “era”. Sim, você agora jaz, mas dentro de mim ainda é. Mesmo que aqui fora as pessoas insistam em dizer para mim que “Heloisa era”. Para mim, Heloisa ainda é. Você foi embora aos poucos. Eu sentia que você escapava pelos vãos de meus dedos, e eu não conseguia mudar minha mão de posição ou cerra-las. Eu não consegui fazer nada. Um dia você estava aqui e bastou uma madrugada para você desaparecer. Eu queria não ter fechado meus olhos naquela noite, eu queria estar contigo.
Claro que me sinto culpada. Eu que todas as noites adormecia no teu leito, não pude estar presente quando deu seu último suspiro, por isso não me lembro de quando você partiu. Eu me sinto tão culpada Helô. Mas você sabia que iria partir, não é? Ou não teria pedido para que eu buscasse sua almofada de leão. Você odiava com todas as forças aquela almofada. Eu deveria saber. Deveria saber que você sabia. Você sabia que o quanto sou fraca, o quanto deixei a desejar como esposa e o quanto era desesperada e dramática. Você queria me encher de boas memórias até quando não pudesse mais e depois partir. É, eu sei. Por isso o médico deixou você sair em uma tarde fria de outono, foi por isso, não é?
Eu sempre fui tão ingênua. Apesar de ser a mais velha eu não compreendia uma porção de assuntos e situações, e eu amava tanto quando você se sentava à minha frente com um pedaço velho de rascunho e traçava diversas linhas e palavras para explicar o que eu ainda não compreendia. Você era tão paciente. Talvez seja por isso que você lidou tão bem com o câncer, por isso não desmanchou tão cedo e não se deixou vencer. A doença não te derrotou. Ela pode ter vencido a guerra, mas não as inúmeras batalhas.
O câncer, por exemplo, trouxe a você um brilho nos olhos que eu jamais vi, e eu me apaixonava a cada vez que meus olhares sustentavam em teus olhos castanhos. Ele trouxe um "movimento" diferente em seus dedos, você deslizava seus dedos por meu corpo de outra forma, era uma outra percepção, e eu agradecia infinitamente por isso. Além do mais, sua sensibilidade aumentou e nossas noites de amor eram diferentes, tão divinas e pacientes. Eu aprendi a olhar milimetricamente para seu corpo e a perceber cada curva, marca de expressão ou pintas que rodeavam seu corpo por inteiro. Digo “seu”, mas ele era todo meu, assim como eu era toda sua, quer dizer, ainda sou sua.
Eu queria que meu travesseiro ficasse menos molhado com tantas lágrimas de saudade que eu choro. Queria não incomodar Mônica e Yasmin, pois elas têm cuidado de mim como se eu fosse um bebê. Talvez eu seja, não é mesmo? Nunca percebi que eu era tão dependente de ti, porque era tudo tão automático, você sempre estava com a mão estendida, mesmo que eu não gritasse, você me segurava para que eu não caísse, e quando eu me machucava tua voz era o meu curativo.
É como se eu tivesse desaprendido tudo. Até mesmo cozinhar; eu não sei fazer um prato com porção para uma pessoa, eu só sei cozinhar para dois ou mais. Não consigo mais fazer o bolo de iogurte, pois você devorava diversos pedaços e eu não ousaria comer, pois não há você para fazer companhia. Eu já não tomo chá na cama antes de dormir, porque não há ninguém para levar minha xícara quando eu adormecer. E nem mesmo assisto TV, porque não tem ninguém para brigar comigo pela escolha do canal. Quem sou eu sem você?
Eu até gosto de pensar em nossas brigas, porque elas me amadureceram e amadureceram a ti também. Nós éramos a dupla perfeita. Dizem que nem tudo pode ser perfeito até o fim e por isso tiraram você de mim. Eu até poderia fazer esse discurso com “poderiam ter me levado ao invés de você”, mas eu não acredito nisso, eu queria que fôssemos assim para sempre, nem eu, nem você, mas nós. Por isso esse texto é repleto de “eu’s” e “você’s”, porque não há mais nós… Não sem você aqui. Quero dizer, aqui dentro do meu peito ainda há um pulsar descontrolado ao pensar em ti, mas fora… é tudo tão… vazio…
Eu fico lembrando de nossa conversa… Aquela no meio do banho em uma noite fria. Nós tínhamos acabado de chegar do velório da mãe de Mônica e você estava abalada, pois já sabia que estava doente, mas tinha medo de me contar…. Enfim, a conversa em questão era na verdade uma dúvida. Você parou de esfregar meu cabelo com xampu e lançou a pergunta que me tirou do chão por alguns minutos.
“Lunna, o que você faria se eu morresse? ”. E eu, sem nem pensar, fui sincera. “Como eu poderia viver sem você? ”. E hoje eu faço a mesma pergunta: como posso viver sem você? Você me ensinou tantas coisas, mas não me ensinou a viver sem ti. E pelo jeito não me ensinou a ser menos clichê.
Irei queimar essa carta daqui à pouco. Yasmin organizou uma fogueira nostálgica, onde Mônica, ela e eu iremos depositar bilhetes e cartas para que a fumaça nos liberte de sentimentos tristes. Não pense que estamos nos libertando de você ou que vamos te esquecer. Essas palavras estão queimando dentro de mim, queimaram na carta e vão queimar - literalmente - em sua memória. Foi a melhor maneira que encontramos de dizer tudo o que gostaríamos de ter dito, até porque o vento não leva até você as minhas lágrimas ou minhas palavras de saudade.
Heloisa, eu… eu espero que você esteja nos observando daí de cima. Pense que está na Torre Eiffel nos observando. Aliás, você lembra de quando visitamos o lugar, não é? Foi lá que você deu a resposta mais importante da sua vida, você disse sim para o meu pedido de casamento. E eu te pediria em casamento quantas vezes fosse possível só para rever a expressão de “surpresa-felicidade” em teu rosto.
Eu sinto tanto… eu sinto muito… eu sinto tua falta… eu ainda sinto você aqui… Mas eu me sinto grata por todo esse tempo contigo. Eu amo você Heloisa. Eu a amo muito.
Espero encontrar uma maneira de seguir em frente, estou tentando, eu juro. E por mais que meu peito peça para que eu encontre contigo logo, eu vou esperar. Vou te esperar assim como eu esperava o horário de visita no hospital; e sei que poderemos ficar juntas de novo.

Com todo o meu amor (e muito mais dele),

Lunna.

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