Desenfado Canino



A semana de Lucas sempre tinha a mesma rotina: acordar-trabalhar-casa-netflix. Apenas no final de semana havia alguma diversão, com programas inesperados escolhidos a dedo por seu namorado. Entretanto, aquela quarta-feira nublada poderia ser um dia diferente, não?
Foi o que pensou quando comprou uma raspadinha do senhorzinho simpático da praça. E o pensamento lhe seguiu até sentar em um dos bancos de madeira; perfeito para descansar. O vento batia sobre a sua face e ele saboreava a raspadinha de groselha, que estava deliciosa. A pracinha estava tranquila e Lucas agradecia por poder ficar à sós por um tempinho.
Bem... não tão a sós quanto pensara...
Ele não sabia há quanto tempo estava sendo observado. Aqueles enormes olhos negros, feito jabuticaba, causavam arrepios, mas não demorou para o rapaz se prender no olhar de piedade do vira lata.
— Ei, garoto! – O vira lata balançou o rabo, todo feliz.
O animal se aproximou sorrateiramente. Esfregou o focinho na mão livre do rapaz, pedindo por carinho. Lucas acariciou então o pelo negro daquele animal carente, enquanto procurava por alguma coleira de identificação. O amigão não parecia tão mau cuidado assim, estava, inclusive, acima do peso. Talvez estivesse perdido mesmo, ou talvez alguém o tivesse abandonado no relento.
Lucas preferia a primeira hipótese.
Respirou fundo. Deixou a raspadinha de lado e pegou o celular. Procurou pelo contato de Paula, sua amiga e dona do abrigo de animais. Discou o número e não demorou muito para a ligação ser atendida.
“Tire uma foto dele, Lucas. Eu posso ficar com ele no abrigo sim, mas você precisa levá-lo para sua casa, ele pode ser de alguém, então não podemos deixá-lo fugir”.
Assentiu. Levantou-se daquele banco e chamou Amigão enquanto caminhava pela praça. O animal o seguiu por três quarteirões, até chegar na casa de Lucas.
Parado em frente ao portão, Guilherme, seu namorado, o esperava de braços cruzados, junto a uma expressão “carrancuda” e lábios trêmulos de nervoso. Lucas pensou em dar meia volta e sair logo dali, mas não podia deixar amigão para trás.
— O que é isso, Lucas? – O rapaz nem teve a chance de responder, pois foi atropelado pelo namorado. — Eu te vi com esse cachorro lá na praça quando passei de ônibus, e pensei: ah não... ele não é doido te trazer um bicho desse tamanho para cá. – Lucas tentou responder, mas não encontrou espaço para falar em meio aquele sermão. — Nós combinamos: nada de cachorro! Então você me trouxe um... um... lobo em forma de cachorro.
O carrancudo revirou os olhos e respirou fundo. Fez uma careta como quem diz “desenrola” e silenciou para ouvir o namorado.
— Ele tem dono e...
— Não vai dizer que nós somos os donos, né? Olha aqui Lucas...
— Não!! – Grunhiu. — Deixa eu explicar, poxa. O amigão aqui provavelmente tem dono e, se não tiver, vai ficar na casa da Paulinha, no abrigo, sabe? Não precisa surtar, amor. É só um cachorro.
— É um lobo. – A carranca diminuiu, mas ainda havia uma careta insatisfeita em sua face.
— Dia difícil, mozão? Vem, o amigão e eu vamos te mimar.
*
A noitinha já havia caído. Guilherme já havia preparado o jantar -congelado- e feito um bife para ele, Lucas e amigão. O namorado tentou dizer que não fazia bem dar um bife daquele tamanho para o cachorro, mas ele nem ligou.
— Guilherme, você pode fazer uma saladinha para mim?
— Shhh... olha só como as orelhinhas dele ficam quando ele deita assim e... ah!
Tiraram diversas fotos do animal. Lucas estava certo, ele tinha dono, donos, na verdade, os quais ficaram preocupadíssimos com a “voltinha” que Major (esse era o nome verdadeiro do amigão) resolvera dar quando fugira do veterinário.
Guilherme murchou quando o interfone tocou. Ele sabia que era hora de entregar o enorme lobo que derrubava todos os utensílios em sua cozinha. Lucas abriu a porta para os donos de Major. Uma senhorinha e uma adolescente. A jovenzinha estava com a cara inchada -talvez por tanto chorar- e a Senhora parecia aliviada por ter encontrado o animal.
— Ele é minha única companhia quando ela está na escola. – Explicou enquanto afagava a pelugem negra do animal. — Obrigada por cuidarem tão bem do Major.
A Senhora olhou para o cantinho da cozinha onde Lucas e Guilherme se espremiam para que todos coubessem no mesmo cômodo. As mãos dos rapazes se soltaram quando a mais velha mirou o belo entrelaço de dedos.
— Vocês formam um belo casal. – Respondeu. — Passem lá em casa qualquer hora, eu faço um bolo de fubá maravilhoso!
Major foi embora com suas donas e logo a casa parecia grande demais para o casal. Guilherme jogou-se no sofá ao lado de Lucas e aninhou-se no peito do namorado. Ligaram a televisão e esperaram a Netflix carregar.
— O que quer ver hoje? – Lucas cortou o silêncio. — Filme? Série? Algum documentário do Oscar?
Sem respostas.
— Guilherme? – Acariciou os fios loiros do namorado. — Tudo bem aí?
Murmurou meia dúzia de palavras enquanto se ajeitava no peitoral do amado. Com certeza havia cochilado de cansaço, afinal, mimara o Major até o último momento que tivera naquela casa.
— Lucas... – Disse baixinho, sonolento, esforçando-se para dizer as palavras. — Talvez não seja uma má ideia arrumar uma companhia... sabe? Um vira lata menor... quem sabe. – Bocejou e afundou-se ainda mais no peitoral do namorado.
— Ué... não era você que não queria um cachorro?
— Shhh... não me faça mudar de ideia.

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